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CULTURA

O filme na Netflix que vai mudar sua forma de enxergar a vida

Por GIANCARLO GALDINO
Publicado em 10-12-2021 às 12:42hrs
A vida acaba, mas a forma como se escolhe viver acaba perdurando para além do fim da existência terrena. Esse é um bom ponto a partir do qual se poderia começar uma das muitas discussões acerca de “Amigas Improváveis” (2019), da sino-canadense Aisling Chin-Yee.
O filme na Netflix que vai mudar sua forma de enxergar a vida

 

Uma história protagonizada por mulheres (quatro), dirigida por uma mulher, e que, por óbvio, privilegia o olhar feminino sobre as relações e o mundo, pode ser tendenciosa — e o é em diversos momentos. Em defesa do trabalho de Chin-Yee pode se contra argumentar que produções em que a presença de homens é hegemônica também se prestam ao triste papel de libelo de comportamentos ultrapassados, malgrado muitos entre esses façam questão de ignorar que o processo de emancipação feminina é muito recente, por mais que grande parte das mulheres sempre tenha trabalhado, e não por gosto, não por terem gozado da oportunidade de, desde tenra idade, estudar, descobrir um campo do conhecimento que lhes despertasse um interesse maior qualquer e, por fim, conseguissem aperfeiçoar seus talentos nos bancos de uma universidade. Essa parcela da população feminina que se vira forçada a pegar no batente, muitas vezes ainda na aurora da vida, decerto não se sente em nada representada pelas protagonistas de “Amigas Improváveis”, cujo grande mérito é justamente esse: falar de um grupo social que também passa ao largo das estatísticas e do interesse sociológico.

A trama é protagonizada por quatro mulheres, mas gira em torno de um homem, mesmo que a única imagem que o espectador consiga elaborar a seu respeito seja um quadro na parede, na recepção que se segue ao seu funeral. Craig era o típico macho que, a pretexto de refazer a vida casando-se pela segunda vez, deixa um rastro de mágoa, aturdimentos, silêncios, e uma vez que essa nova união igualmente se acaba, agora pela morte, restam também assuntos muito mais áridos a se vencer e faturas muito menos subjetivas a se liquidar. De ambos os relacionamentos resultaram filhos, ou melhor, filhas, feliz ou infelizmente. Com Cami, vivida por Heather Graham, Craig teve Aster, de Sophie Nélisse; de seu segundo envolvimento mais sério, com a inconstante Rachel, uma performance louvável de Jodi Balfour, nascera Talulah, papel de Abigail Pniowsky, que certamente puxara a algum parente desconhecido, dadas sua tranquilidade e sensatez. Tudo leva a crer, à medida que a narrativa se adianta, que Craig nem sequer se dignara a esperar pelo divórcio de Cami para se envolver com Rachel.

O roteiro de Alanna Francis sublinha a imaturidade dessas mulheres, forçadas a desenvolver um modo mais prático de levar a vida, mas incapazes de reconhecerem-se responsáveis pelas escolhas que fizeram, não só vítimas da canalhice de um homem pretensamente amoroso. É muito mais simples sentir vergonha, contrabalançá-la com um sentimento de culpa que, ao menos num primeiro momento, fede a hipocrisia, e por fim, deixar tudo como sempre esteve, atribuindo à complexidade do problema um fumo denso de rancor e de ódio, mormente contra o defunto, que não vai dizer nada mesmo. Os laços de sangue entre Aster e Talulah, definidos por Craig, o garanhão sem freio, evidentemente também não lhes diz coisa alguma, e se tudo correr à luz da lógica, é recomendável a Aster esquecer de vez a meia-irmã mais nova, antes que ela também se torne adulta e reivindique seus acertos de contas. Rachel em breve não terá mais onde morar com a filha, uma vez que o companheiro deixara de honrar a hipoteca da casa há seis meses e logo tudo irá a leilão, ao passo que não consegue aceitar a oferta de Cami de se acomodar com a garota num dos quartos da mansão em que vive com Aster.

Francis pontua a todo momento a culpa, o incômodo de se ter de deparar com a gravidade das decisões erradas, que podem reverberar por muitos anos, sem se atentar sobre se ainda existe motivo para se viver tão mal. A “primeira esposa” não fora exatamente generosa ao fazer o convite e as expressões estudadamente calculadas de Graham dão ao público a sensação de que o que ela quer mesmo é provocar Rachel, testá-la, saber até que ponto é capaz de se curvar sem se partir ao meio, mesmo chegando bem próximo disso. São abordagens cruéis para uma questão que fere as quatro, umas mais que outras.

A tal sororidade, a irmandade entre mulheres, só começa a ter alguma chance passada mais da metade de “Amigas Improváveis”, de um jeito bastante farsesco, que se diga. A guerra de nervos travada entre Cami e Rachel — mais precisamente de Cami contra Rachel — é o que pode haver de mais contraditório e de mais comovente no enredo. Aos poucos, de suas diferenças, nasce um sentimento qualquer que passa a uni-las, como se de súbito fosse removida uma montanha de concreto que as separava e elas entendessem, por fim, que sempre estiveram no mesmo lugar, ainda que em campos, vá lá, opostos. Graham e Balfour apresentam-se em grande forma, uma contribuindo para que a outra se destaque na hora certa, mas é impossível não mencionar a aproximação das meias-irmãs Aster e Talulah, que se livram daquilo que restava quanto a se tornarem, verdadeiramente amigas, e se gostarem como tal, a despeito de serem filhas do mesmo homem. Nem sempre o sangue fala mais alto. E que bom que seja assim.

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